quarta-feira, 10 de outubro de 2012

"Vocês agora são números e os números não têm fome"

- Pai tenho fome.
- João nós não temos fome. Há mais de dois anos que é assim.
- Oh pai mas eu acordo todos os dias com fome.
- João o pai já te explicou que essa palavra já nem pode ser dita na rua. Não te esqueças, vais agora para a escola e lá ninguém tem fome. Nem tu. Não podes falar nisso, não podes dizer essa palavra. E se ninguém tem fome, por que haverias tu de ter?
- Sim pai. Eu já percebi mas continuo com fome. Podes trazer algo para comer logo à noite? Eu não digo a ninguém...
- Vai lá para a escola João, vá.

Há praticamente três anos que a palavra "fome" tinha sido proibida no País das Ajudas. No princípio foi difícil mas agora já todos sabiam que não podiam fazer referência à falta de comida. No trabalho, António, pai de João, falava às vezes em segredo com alguns colegas sobre o assunto. Dizia sempre que o que mais lhe custava era o filho, não era ele, e que se pudesse dava-lhe alguma coisa para comer, nem que fosse só de vez em quando. Era um sentimento generalizado entre os pais neste país. Uma nação que tinha permitido a entrada de ajudas e que, por essa razão, começou a ter de pagar caro para continuar a ser considerado um país e não uma colónia dos tais "ajudantes".
Os cortes começaram logo pelos ordenados. Os despedimentos em massa seguiram-se. Os trabalhadores perderam direitos. Os alunos deixaram de ter acesso a um ensino considerado razoável porque isso era demasiado caro. Este país passou a ser insuficiente em tudo o que servia a população, mas suficientemente bom para pagar as suas contas no fim do mês. O povo calou-se, achou que nada havia a fazer, e começou a passar dificuldades. As pessoas sem trabalho multiplicavam de dia para dia e os que trabalhavam só tinham dinheiro para pagar os impostos exigidos pelo Estado. Pelo Estado? Sim, eles continuavam a chamar-lhe Estado governando por políticos democraticamente eleitos. Era assim também que a mensagem saía pelos media para o estrangeiro. Mas tudo aquilo não passava de uma ditadura.
Os "ajudados", vamos chamar-lhes assim, ainda tentaram revoltar-se quando sentiram fome pela primeira vez mas já era tarde. O Estado respondeu-lhes à letra: "Vocês agora são números e os números não têm fome". Eles ouviram, calaram-se e perceberam que ou abandonavam o território ou aceitavam. Alguns partiram...mas muitos ficaram e alimentaram a esperança de que um dia teriam pago tudo aos "ajudantes" e o país voltaria ao que era.
Hoje, continuam a ser números...

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Merdas que escrevo - parte 3456789

Tenho saudade...

Gostava que tudo fosse mais fácil,
Que os sentimentos passassem,
Que a vida fosse transparente,
Que não me mentissem.

A ingenuidade de criança deixa saudade,
Não quero ter o peso da idade.
Quero voltar a nascer,
A ser abraçada.

Perdi-me na grandeza,
Na idiotice da suposta verdade,
Na teimosia dos padrões,
No sonho de alguém que amo...

Preciso de música,
Preciso de desporto,
Preciso de voltar atrás e aproveitar o que desperdicei.
É um processo impossível,
Tal como é impossível dar valor ao que tenho.

Tenho saudade...

Dos avôs,
Das avós,
Dos pais,
Dos primos,
Dos tios...

Da horta,
Da escola,
Da amizade,
Da juventude.

Das asneiras,
Das bebedeiras,
De ti...
E de ti...

Tenho saudades minhas...já não sou quem fui, não sou quem queria ser!