- Pai tenho fome.
- João nós não temos fome. Há mais de dois anos que é assim.
- Oh pai mas eu acordo todos os dias com fome.
- João o pai já te explicou que essa palavra já nem pode ser dita na rua. Não te esqueças, vais agora para a escola e lá ninguém tem fome. Nem tu. Não podes falar nisso, não podes dizer essa palavra. E se ninguém tem fome, por que haverias tu de ter?
- Sim pai. Eu já percebi mas continuo com fome. Podes trazer algo para comer logo à noite? Eu não digo a ninguém...
- Vai lá para a escola João, vá.
Há praticamente três anos que a palavra "fome" tinha sido proibida no País das Ajudas. No princípio foi difícil mas agora já todos sabiam que não podiam fazer referência à falta de comida. No trabalho, António, pai de João, falava às vezes em segredo com alguns colegas sobre o assunto. Dizia sempre que o que mais lhe custava era o filho, não era ele, e que se pudesse dava-lhe alguma coisa para comer, nem que fosse só de vez em quando. Era um sentimento generalizado entre os pais neste país. Uma nação que tinha permitido a entrada de ajudas e que, por essa razão, começou a ter de pagar caro para continuar a ser considerado um país e não uma colónia dos tais "ajudantes".
Os cortes começaram logo pelos ordenados. Os despedimentos em massa seguiram-se. Os trabalhadores perderam direitos. Os alunos deixaram de ter acesso a um ensino considerado razoável porque isso era demasiado caro. Este país passou a ser insuficiente em tudo o que servia a população, mas suficientemente bom para pagar as suas contas no fim do mês. O povo calou-se, achou que nada havia a fazer, e começou a passar dificuldades. As pessoas sem trabalho multiplicavam de dia para dia e os que trabalhavam só tinham dinheiro para pagar os impostos exigidos pelo Estado. Pelo Estado? Sim, eles continuavam a chamar-lhe Estado governando por políticos democraticamente eleitos. Era assim também que a mensagem saía pelos media para o estrangeiro. Mas tudo aquilo não passava de uma ditadura.
Os "ajudados", vamos chamar-lhes assim, ainda tentaram revoltar-se quando sentiram fome pela primeira vez mas já era tarde. O Estado respondeu-lhes à letra: "Vocês agora são números e os números não têm fome". Eles ouviram, calaram-se e perceberam que ou abandonavam o território ou aceitavam. Alguns partiram...mas muitos ficaram e alimentaram a esperança de que um dia teriam pago tudo aos "ajudantes" e o país voltaria ao que era.
Hoje, continuam a ser números...
Apenas uma correcção, estás a confundir estado com governo, o estado somos todos nós. Quem governa o estado, politicos eleitos que formaram governo, esses sim podem/dizem que somos numeros. O estado nunca pode dizer isso.
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